Utopias na Ficção: O que realmente queremos?

Fala, povo. Sou o Luna. De maneira geral, meus posts vão ser mais reflexões pseudo cultas da ficção, então se você é do tipo que gosta de pensar em paralelos filosóficos e ideológicos de filminho de herói e coisas do tipo, chuto que a leitura pode ser proveitosa.

Imagino que seja um consenso quase global de que o mundo é pelo menos um pouco pior do que deveria ser. Desastres, guerras, desigualdade, fome, injustiças, tragédias, e corrupção são palavras muito familiares em todos os tempos da história. 

A maneira mais comum que encontramos de lidar com essas coisas é reclamar, é claro. Somos excelentes nisso. Dizemos que o modelo sociopolítico X priva as pessoas da liberdade, que a ideologia Y propaga ódio, que a classe social Z deveria ser abolida. Os mais ousados chegam a apontar os caminhos para esse erro, dando supostas soluções que resolveriam o problema. Mas a realidade é que, tão preocupados em sair de onde estamos, é pouco comum que pensemos a sério onde queremos chegar, e as consequências disso. Que mundo, de verdade, nós queremos?

Nesse post vou fazer alguns paralelos entre os filmes dos Vingadores, o anime Psycho Pass e o livro Admirável Mundo Novo. Todos são bastante famosos. Estou me considerando livre para dar spoilers a partir daqui.

Se te perguntassem qual o mundo ideal, o que você responderia? É bem provável que fome, miséria e escassez não estivessem nessa lista. Na verdade, se eu te soprasse a ideia de que “um mundo excelente seria o que todas as pessoas são felizes”, você diria que é um princípio bastante conveniente. O que pode ter de errado com um mundo em que todas as pessoas são felizes? Não é a felicidade o bem final?

Costumamos chamar esse ideal de utilitarismo clássico: A ideia de que a melhor ação é a que maximiza a felicidade. Existe um homem na ficção que levou essa ideia às últimas consequências, que é o nosso querido alienígena roxo, o Thanos. A ideia do Titã Louco no roteiro dos irmãos Russo é bem simples: Acaba com a escassez matando metade da população, dando assim recursos para todo mundo. Ligeiramente radical. Em Ultimato repara depois que essa ideia dá errado, porque a metade que sobra fica… Bem… Triste né, com os amigos que morreram. Então ele tem uma ideia mais genial ainda: Mata todo mundo, e cria uma nova população agora feliz e ignorante, que está tudo resolvido.

A ironia é que não existe defeito nenhum na ideia do Thanos, num ponto de vista utilitarista: A felicidade do mundo de fato vai aumentar. Se antes você tem um monte de gente triste e insatisfeita, você pode criar um novo mundo onde as pessoas são muito mais felizes, e o somatório de alegria é maior. As pessoas que morreram não vão ter tempo de ficar tristes por isso: Estão mortas, afinal. Qual é, exatamente, o problema?

Bom, vou assumir aqui que não concordamos com o Thanos, mas respeito outras opiniões.

O ponto é que parece existir um valor que é perdido no Plano Thanos: O de que todos têm direito à vida, e que ela não deveria ser tirada, mesmo que isso traga um aumento na dose de felicidade. A partir desse ponto, felicidade parece ser insuficiente para construir o nosso mundo ideal. Precisamos de direitos fundamentais. Quais valores existem além desse?

Um anime que brinca com a ideia de utopia distópica é Psycho Pass. Para quem não assistiu (Recomendo apenas a primeira temporada. Tem na Netflix), trata-se de uma sociedade onde um algoritmo é capaz de escanear um ser humano e estimar a probabilidade de ele cometer um crime. Se a probabilidade é alta, ele é tratado como um criminoso, e é detido e preso por isso. Nessa sociedade, portanto, nenhum crime ocorre efetivamente: Os criminosos são detidos antes de chegarem a fazer alguma coisa, e o mundo vive uma eterna paz e felicidade em harmonia com a tecnologia (Pelo menos, em teoria).

Esqueçamos que Makishima existe e vamos fingir que o modelo de Psycho Pass de fato funciona: O algoritmo é perfeito e avalia corretamente o potencial de cada um cometer um crime, condenando quem o faz e mantendo a ordem. Esse seria um mundo a ser almejado? Essa distopia causa um pouco menos de estranhamento que a do Thanos, e talvez a primeira vista pode até parecer desejável, mas ela tem um problema muito desconfortável: Você é julgado sem ter feito nada.

Não existe uma definição muito sólida de justiça. Filósofos como Sócrates tentam arduamente definir. Mas um princípio que é mais ou menos aceitável é que justiça é cada um ter o que merece. E o fato é que, quando pensamos que em Psycho Pass um homem pode ser preso ou até ser executado sem mover um dedo para machucar alguém, podemos pensar: “Caramba, isso não é justo”.

Afinal, não estamos assumindo que as ações humanas são pré-determinadas. O psycho pass aponta apenas uma tendência, então, na realidade, prender um homem que ainda não cometeu um crime é eliminar a sua liberdade de escolher não cometê-lo: O modelo do anime é uma negação à liberdade e a vontade humana, bem como à justiça. Não é um mundo a ser buscado, por mais que todos sejam felizes, e estejam vivos.

Na realidade, a obra que leva a questão do utilitarismo mais ao pé da letra é Admirável Mundo Novo, de Huxley. Ele apresenta um mundo que é, na verdade, perfeito: Não existem guerras, escassez, injustiças ou tristeza. As crianças, ao nascerem, são submetidas a um processo hipnótico, onde uma voz no ouvido delas as ensina de qual classe social elas são, do que elas gostam, os hábitos que devem ter, e porque elas são muito satisfeitas com a vida delas.

O conhecimento não é estritamente proibido: Ninguém procura por ele. Há um excesso de informações fúteis, que todos preferem, e não tem por que buscar nada mais. Os livros, poesias,  filmes e desenhos são produzidos por computadores, que avaliam as tendências e criam roteiros com autonomia artificial, para agradar ao público. Nada é autêntico. As pessoas são incentivadas a consumir muito, fazer bastante sexo, e sempre andar em grupos. A vida é uma eterna festa.

O elemento talvez mais interessante do mundo de Huxley é o soma: Soma é uma droga sem efeitos colaterais. Um comprimido que, uma vez que você consome, te faz sentir todos os prazeres que uma droga faz, mas sem te causar nenhum problema. Ele é oferecido pelo próprio governo e incentivado para qualquer momento em que você sinta que não está tão bem quanto gostaria: A droga te deixa feliz na hora, e todos os problemas desaparecem.

Aí está a mágica do Admirável Mundo Novo: Está tudo bem. Não existem problemas. Aflições. Prisões. Descontentamentos. Ninguém tem prejuízo. Todos são livres. Ninguém sente falta de coisas como arte, autenticidade, conhecimento verdadeiro, fortes paixões. Elas vivem felizes sem isso. O que falta?

O desconforto que a leitura de Admirável Mundo Novo traz é singular. Você sabe que está errado, mas não entende bem o porquê, simplesmente porque você está acostumado a pensar na felicidade como o fim. Você começa a perceber que a expressão artística autêntica, a busca pelo conhecimento, a solidão, o direito de não ser adestrado, tudo isso são valores tão importantes quanto o primeiro: Mesmo que ninguém sentisse falta deles, essa ausência ainda seria um problema.

Nesse ponto, você começa a pensar: É possível criar uma utopia que mantenha esses valores, mas as pessoas ainda sejam felizes? Mas eu vou te perguntar: Seria o suficiente? Será que, qualquer a utopia que pensemos, não poderíamos apontar um problema nela, e não sentiríamos falta de outra coisa? O que nós queremos exatamente?

A conclusão talvez seja de que nunca dá pra satisfazer realmente o enorme buraco negro que é a necessidade humana, e que nesse mundo ou em qualquer outro imaginável, haveria uma falta. É nesse ponto que você pega algum anime para assistir, e para de pensar nisso, porque é tosco demais. Talvez nosso mundo não seja pior que nenhum outro que pudéssemos ter.

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